sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Contos de Assombrar do Minho Vol III - O Portão do Diabo


Como todos os anos, as noites de inverno á lareira são propícias a conversas mais longas. Invariavelmente, talvez devido ao inevitável sentido ritual que o fogo transmite aos Humanos, a conversa ruma ao passado. Cruza as tempestuosas histórias e lembranças de outros tempos e amarra, caso as marés da vontade estejam propícias, nos contos, lendas ou mistérios que nunca ninguém conseguiu explicar.

O relato que aqui vou narrar foi me contado por vários membros da família incluindo a pessoa que passou pela experiência. No que me toca, atesto pelas suas honras! Todos são membros respeitáveis da sociedade. Daquelas que vem da última geração de pessoas honradas, que metem a mesma á frente de todas as decisões que tomam na vida. A bem,ou a mal...

Certo dia, há cerca de 25 anos em Agosto, um homem vinha da casa de uns familiares onde tinha passado o serão na companhia de muitos primos e amigos que, nesta temporada estival, recuperavam no seu país natal dos males da saudade e do trabalho.

Pelo caminho que, naquela época, ainda não era mais do que um carreiro ladeado de valados e árvores de enforcado, podia-se ainda espreitar a vastidão dos campos e os imponentes contra fortes da serra que não tinham começado ainda a sofrer os malefícios das construções das mal afamadas "favelas dos ricos".


Os extensos milherais a aproximarem-se rapidamente da maturidade precisavam de rega regular pelo que o mesmo carreiro transformava-se, á noite, num riacho quase intransitável. Com algum custo, mas com a experiência do seu lado, o homem saltitava entre as poças de água tentando evitar, através da penumbra, os regos e as "bostas" dos animais. Sem qualquer problema de maio, ultrapassou a parte do caminho mais alagado acedendo a uma outra porção do mesmo onde a calçada era mais digna. Isso sem dúvida por se aproximar do casario do senhor que dominava aquelas férteis terras do vale.

Andava assim o homem despreocupado, na sua moderada mas sincera felicidade, até que começou a aproximar-se do chamado "Portão do Diabo". Esse é um portão aparentemente normal. Cor de sangue, antigo, com algum trabalhado ornamental e uma fechadura que, dizem os mais antigos, nunca teria sido aberta. De facto, aquele portão era (e é) estranho.

Apesar da sua fisionomia ser normal, a sua localização é do mais intrigante. A parede de pedra que compõe a cerca do edifício é de repente interrompida por esse objecto de metal sem qualquer razão aparente. Atrás dele não se encontra nada. Nem portão, nem pátio, nem caminho.

Apenas uma singela e rara (na região) árvore de fruto. Uma Romãzeira.


Atenção caros leitores, o "Portão do Diabo", há muito tem esse nome. Nem os meus avós me souberam dizer o porquê desta designação porque, quando eles nasceram, já ali estava a quinta e já o portão tinha o mesmo apelido. Já nesse tempo era olhado com desconfiança tanto pela sua localização como pelas estranhas coisas que se passavam tempos a tempos nas suas proximidades.

Para o homem em questão, todas essas questões não eram do seu interesse. Como pai de família jovem e valoroso nunca se tinha deixado embalar pelos delírios das velhotas da aldeia e, o maior susto que ele jamais tinha apanhado, acabou por se revelar como sendo o barulho do coveiro a acabar de enterrar um caixão numa noite de inverno. No dia seguinte a essa "manifestação do além", todos diziam que o Morto tinha querido sair do mundo das Almas e inúmeros foram os que juraram ter ouvido todo o tipo de sons no cemitério naquela noite. O homem riu-se da parvoíce de toda a gente mas não disse nada. Aos parolos as parolices!

Essa escura noite de verão, porém, não era como as outras. Ou melhor, começou como as outras e estava prestes a terminar como qualquer uma. Prestes a chegar a casa, a humidade que exalavam os milherais abrasados de dia pelo calor e regados á fresca da noite era óptima para a vida animal. Pássaros noctívagos, grilos, gatos, cães, outros mamíferos e insectos de todas os tamanhos e feitios, aproveitavam a riqueza da terra para cantar ao mundo os seus lamentos e alegrias.

Ia distraído o homem a ouvir inconscientemente a melodia da Natureza quando, ao chegar perto do idoso portão, reparou num estranho silêncio. Um silêncio repentino que não era normal e que soava ruidosamente a falso. Os seus passos, que até agora tinham andado mudos, começaram subitamente a fazer imenso barulho. Ou pelo menos, o som normal que provocavam, entoava inquietantemente na inesperada calmaria do momento.

Muitas vezes repito que apenas aqueles que já andaram de noite, imersos no mundo rural, isto é, naquele mundo antigo onde não havia ainda luz pública e onde a maioria das habitações apenas dispunham de iluminação a petróleo ou vela, é que podem entender o que, por vezes, vai na cabeça de um caminhante da noite.


Por muito corajoso que ele seja, haverá sempre um dia ou outro em que, por qualquer motivo, irá sentir um arrepio pelas costas abaixo, sentir um par de olhos pousado na nuca e adivinhar por entre a vegetação uma qualquer entidade por ventura imaginária. O ser humano receia o escuro. Não há nada a fazer. E os corajosos são os que enfrentam os receios pois, os que nunca tem medo, são os loucos e os mentirosos.

Assim sendo, o homem avançava céptico em direcção a casa. Engolindo em seco, tentou convencer-se do óbvio, ou seja, de que ali apenas estava um caminho escuro e que, se estava um silêncio de Morte, é porque a Natureza também dorme.

No entanto, quando chegou ao nível do "Portão do Diabo", para seu terror mas, incompreensivelmente, não ficando surpreendido, sentiu algo à volta do pescoço a aperta-lo e empurra-lo contra a cancela. Abismado com o que lhe estava a acontecer, teve o reflexo de levar as mãos aos braços imaginários do agressor tentando defender-se. No entanto, não teve obteve uma resposta material á força que o estrangulava.

Durante uns segundos foi deixado em paz. Ficou de cócoras a tremer contra o portão até o impulso natural da sobrevivência surgir com toda o poder de uma violenta descarga de adrenalina.

No entanto, mal se levantou e deu o primeiro passo, sentiu de novo aquele pesado poder a envolve-lo como se de um abraço mortal se tratasse. Mais uma vez foi atirado contra o portão mas, desta vez, a pressão exercida não abrandou. Ficou aplacado contra o ferro do portão, de bicos de pés faltando-lhe cada vez mais o ar.

Numa tentativa de se libertar do que quer que fosse que o oprimia, segurou-se com o seu braço direito a um cano de uma videira que pendia de dentro da propriedade. Puxando com todas as suas forças foi-se deslocando alguns centímetros. Instintivamente, a sua reacção foi a de se afastar do portal demoníaco.

A força maléfica, pareceu entender as suas intenções e redobrou de intensidade. O corpo do homem ficou cada vez mais comprimido contra o metal frio dando a sensação de que a entidade que o assolava queria que ele se fundisse com o portão.

Num último esforço, o homem conseguiu rodar sobre si mesmo e ficar agora com a face colada á cancela. Esta nova posição fez com que ficasse com mais força para se agarrar aos ramos que segurava. Numa última contracção dos músculos antes de ficar sem forças, conseguiu por parte do corpo fora da área do portão. Imediatamente sentiu que os membros que se encontravam fora da sua área ficaram libertos da pressão exercida. O ânimo desta constatação fez com que saísse rapidamente da zona maldita.

Mal conseguiu caiu desamparado e ficou, ofegante, uns largos minutos encostado á parede a chorar. Transtornado, levantou-se a custo e regressou titubeando pelo caminho de onde veio.

Os familiares, surpreendidos e incrédulos com o estado em que se encontrava o Homem, tentaram a custo aceitar o que ele lhes contava. Por um lado estava a palavra de uma familiar sincero e honesto. A sua cara, lívida, era igualmente um testemunho factual de um acontecimento anormal. No entanto, do outro, está a razão e o raciocínio lógico do ser Humano que procurava outras explicações para o sucedido.

Alguns dos homens, à procura de algum sinal do que poderia ter acontecido, deslocaram-se correndo até ao local da cena. Daí, apenas recolheram o relógio do homem que se encontrava partido no meio do caminho. Os mesmos homens tiveram de acompanhar o seu familiar até casa, dando a volta á freguesia para não ter de cruzar aquele caminho de novo.


Ainda hoje, 25 anos depois, o homem em causa recusa passar a pé por esse portão. E, de noite, nem de carro o faz.

Na altura, a notícia espalhou-se pela freguesia. Uns diziam que o Portão voltou á vida e que era preciso levar lá um padre para fazer um exorcismo. Outros diziam que isso aconteceu porque o padre da freguesia, tentando combater os heréticos, deixou de levar o compasso Pascal ao portão. De facto, os padres anteriores sempre o benziam e os problemas nunca surgiam. Outros ainda, afirmavam que tudo eram historias de embalar e que, sustos, nunca tinham tido e nunca iriam ter.

Por entre estas conversas, uma das mais velhas pessoas da terra, uma idosa que sempre viveu solteira no seu casebre de pedra, contou uma estranho pormenor sobre o portão e o que o envolve.

Segundo ela, os primeiros donos da quinta, aquando a sua construção, procuravam o melhor local para escavar um poço. Para tal obra mandaram antes de mais chamar o mudo da terra. Esse mudo fora uma pessoa singular que, pelo que contava a velhota, tinha sido o melhor enxertador da região e o único a ainda encontrar as veias de água graças apenas a um galho de oliveira.


Andando o mudo a percorrer os terrenos imediatos da casa, foi ter ao local do portão que, nesse tempo, ainda não existia. Conta a lenda que a reacção do galho de oliveira foi tão violenta e inesperada que o mudo ficou assustado com as características do lugar. Água teria de certeza. Porém teria ainda algo mais! Qualquer coisa emanava daquele sítio.

O mudo, no mundo dele, na razão que só ele entende e que só ele desenvolveu através de uma vida de meditação, tomou uma estranha opção. Depois de se ter ausentado uns dias voltou com uma pequena Romãzeira. Árvore que, segundo os mais entendidos, é extremamente difícil de criar e que, na nossa região, só as terras mais ricas podem sustentar.


A Romãzeira, tal como previa o mudo pegou. Ainda hoje existe atrás do portão que foi colocado para que as pessoas não frequentassem aquele lugar. Mais estranho ainda foi o que a velhota disse em seguida. Segundo ela, quem costuma comer Romãs são os pássaros do inferno (Fénix?). Quando tem fome, andam á volta dela e protegem-na. Quando estão cheias, desaparecem até um dia voltar.

Fascinante de facto as histórias que os nossos antepassados nos legavam. Mitos? Factos inexplicáveis? Lendas? Realidade? Quem sabe?

Ainda á lareira, discutíamos apaixonadamente essas questões quando um de entre nós exclamou:

"Certo certo é o Vinho! Depois dele o ter bebido naquela festa, tanto ou mais quanto eu, por certo andava aos encontrões ás paredes. Muitas vezes fiquei eu a descansar nos valados! Diabo? Qual diabo! O Diabo que ia com ele estava-lhe nas veias! Era o Vinho"

Acreditemos no que quisermos, a verdade é que a maneira de explicar a realidade dos antigos era muito mais poética e interessante...