terça-feira, 16 de novembro de 2010

No tempo em que não havia televisão...


"Vivia no Pombal um homem que tinha o fado de sair de casa à meia-noite e que se transformava em cavalo. Tinha de percorrer sete freguesias onde existisse pia baptismal. Um dia, a mulher dele pediu a um vizinho que, quando o visse passar, o picasse com um aguilhão. E assim aconteceu junto à casa, que ainda existe. Ele transformou--se em homem e disse: "boa-noite, senhor José Pereira". Este ficou tão assustado que até adoeceu".


"A minha bisavó era a mulher do bisavô da Flora. Numa noite, ele foi para a quinta tratar do vinho nos tonéis e, quando regressava a casa, viu um cabrito aos saltos. Lá o agarrou, pô-lo ao pescoço e subiu até à aldeia. Uma vez chegado, o cabrito deu um pulo, riu-se e disse-lhe: "agora, vai gabar-te que vieste todo o caminho com o diabo às costas"
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3 comentários:

Maria disse...

Ah! Estas histórias de antigamente são verdadeiramente deliciosas. :)

Mesmo as histórias infantis que se contavam à lareira, nas noites de inverno, eram maravilhosas. Conheces o livro Contos Populares Portugueses, de Adolfo Coelho? É um livro fantástico, que foi reeditado em 2009 pela editora Leya, na colecção BIS, e custa apenas cerca de seis euros. Perdoa-me a publicidade, mas é uma pena que as nossas velhas histórias se percam, que já não se contem aos miúdos de agora…

Hum, deixa-me transcrever uma dessas histórias:

«Havia um homem que tinha tantos filhos, tantos que não havia ninguém na freguesia que não fosse compadre dele e vai a mulher teve mais um filho. Que havia do homem fazer? Foi por esses caminhos fora a ver se encontrava alguém que convidasse para compadre.
Encontrou um pobrezito e perguntou-lhe se queria ser compadre dele.
— Quero; mas tu sabes quem eu sou?
— Eu sei lá; o que eu quero é alguém para padrinho do meu filho.
— Pois, olha, eu cá sou Deus.
— Já me não serves; porque tu dás a riqueza a uns e a pobreza a outros.
Foi mais adiante; e encontrou uma pobre e perguntou-lhe se queria ser comadre dele. — Quero; mas sabes tu quem eu sou?
— Não sei.
— Pois, olha, eu cá sou a morte.
— És tu que me serves, porque tratas a todos por igual.
Fez-se o baptizado e depois disse a Morte ao homem:
— Já que tu me escolheste para comadre, quero-te fazer rico. Tu fazes de médico e vais por essas terras curar doentes; tu entras e se vires que eu estou á cabeceira é sinal que o doente não escapa e escusas de lhe dar remédio; mas se estiver aos pés é porque escapa;
mas livra-te de querer curar aqueles a que eu estiver á cabeceira, porque te dou cabo da pele.
Assim foi. O homem ia ás casas e se via a comadre á cabeceira dos doentes abanava as orelhas; mas se ele estava aos pés receitava o que lhe parecia. Vejam lá se ele não havia de ganhar fama e patacaria, que era uma cousa por maior! Mas vai uma vez foi a casa dum doente muito rico e a Morte estava á cabeceira; abanou as orelhas; disseram-lho que lhe davam tantos contos de reis se o livrasse da Morte e ele disse:
— Deixa estar que eu te arranjo, e pega no doente e muda-o com a cabeça para onde estavam os pés e ele escapa.
Quando ia para casa sai-lhe a comadre ao caminho:
— Venho buscar-te por aquela traição que me fizeste.
— Pois, então, deixa-me rezar um padre-nosso antes de morrer.
— Pois reza.
Mas ele rezar; qual rezou! Não rezou nada e a Morte para não faltar á palavra foi-se sem ele.
Um dia o homem encontra a comadre que estava por morta num caminho; e ele lembrou-se do bem que ela lhe tinha feito e disse:
— Minha rica comadrinha, que estás aqui morta; deixa-me rezar-te um padre-nosso por tua alma.
Depois de acabar, a Morte levantou-se e disse:
— Pois já que rezaste o padre-nosso, vem comigo.
O homem era esperto; mas a Morte ainda era mais; pois não era?»

Contos Populares Portugueses, de Adolfo Coelho.
http://www.archive.org/details/contospopularesp00coeluoft

Cerquido disse...

Adoro estas histórias! Já passei uma tarde inteira a ouvir semelhantes... Mais uma vez tenho de falar da estupidez que é importar cultura lá de fora quando não nos faltam coisas destas. Quase podiamos criar uma "mitologia" única....

Maria disse...

Já que falamos na nossa mitologia, permitam-me que referira o livro Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa, de Consiglieri Pedroso. Este senhor desenvolveu um importante trabalho sobre a nossa mitologia e a nossa cultura popular.