Existe a poucos minutos a pé de minha casa um local estranho onde se pode ver um enigmático monumento de pedra cujo dizem os antigos, serem as 4 campas de 4 irmãos.
A lenda que é conhecida de todos nas freguesias vizinhas conta que:
Eram quatro irmãos. Fortes e belos. E amigos. Como não se conheciam outros. Quatro irmãos, órfãos de pai e mãe. Mas tão unidos que serviam de exemplo. Exemplo de lealdade e de compreensão.
Pois os quatro irmãos viviam ali, na freguesia de Sande, no cenário paradisíaco do Minho, e andavam sempre juntos. Um dia, o mais velho disse para os outros três:
- Rapazes! Vamos hoje à Feira Grande. Já tenho o carro aparelhado. Voltou - se para o mais novo.
- Tu, arranja o farnel!... Leva bastante comida, Hem! Vamos lá passar todo o dia e talvez mesmo um bocado da noite.
Depois dirigiu-se aos outros dois:
- E vocês preparem mantas para o regresso. Podemos voltar tarde e é capaz de arrefecer. Temos de ter cautela com a saúde!
Não tardaram a ser cumpridas as ordens do irmãos mais velho. Este esfregou as mãos, jubilosamente.
- Assim, até apetece.Quando nós, os quatro irmãos, nos metemos ao trabalho, tudo se faz numa instante!
Riram todos. Quatro gargalhadas frescas e sadias.
Apontando o carro já preparado para a viagem, o irmão mais velho acentuou: - Vai ser um dia bem passado, lá isso vai!... Ou muito me engano, ou a Feira Grande este ano subirá de fama nas redondezas!
Os outros três corroboraram logo:
- Claro! Nós somo bem conhecidos e já nos esperam com toda a certeza! - Seremos mais uma vez a grande atracção da feira, vocês vão ver! - Quem é que pode resistir a boa amizade de nós quatro?...
E os quatro irmãos tomaram os seus lugares no carro e abalaram de corrida para a Feira Grande.
Tudo se passou tal como eles pensavam. A certa altura, tinham-se transformado nos heróis da Ferira Grande. Quatro heróis. Sempre juntos, sempre amigos!
Porém, a multidão foi crescendo, aumentando, e acabou por separá-los, mau grado deles.
O mais novo dos quatro irmãos viu-se de súbito diante duma jovem de extraordinária formosura. Pareceu um pouco aturdido. Não se sentia bem. Faltava-lhe a companhia dos outros três. E tentou continuar à procura deles. Mas a jovem formosa cortou-lhe a passagem, olhou-o bem de frente e disse sorrindo:
- Escusais de pensar encontrar agora os vossos irmãos.
E acentuando o riso e o olhar:
- Fui eu própria que vos separei.
O mais novo dos quatro reflectiu primeiro com surpresa, depois curiosidade. - Vós, Senhora?... Mas.para quê?...Por que motivo?
Ela inclinou-se para a frente. O seu perfume perturbou-o.
- Não gosto de concorrentes.Até à vossa chegada, era eu a rainha da festa! Foi a vez do jovem sorrir.
- E continuais a ser, sem dúvida alguma.
Depois, talvez arrastado pelo perfume que aspirava, prosseguiu:
- A vossa beleza, Senhora, é superior a tudo quanto nos rodeia!
Ela meneou os seus belos cabelos negros, num ar de graça.
- Obrigada pelo madrigal!...Já vejo que sois poeta!
O rapaz começou a sentir-se mais à vontade.
- Se poesia se pode chamar à verdade, Senhora.Então, sim, sou poeta para cantar a vossa formosura.
Sem querer ( ou talvez não) as mãos dela tocaram as mãos dele.
- Deveras me lisonjeais com tais palavras.Embora ainda tão novo, já sabeis falar muito bem!
O seu olhar tornou-se muito triste.
- Mas sereis eu merecedora de tanta atenção?...
O mais novo dos quatro irmãos empertigou-se. Ganhou figura.
- Digo-vos mais, Senhora. Se vós quisésseis.
- Se eu quisesse?...
- Poderíamos ser felizes!
Calaram-se. Ela, a meditar. Ele, surpreendido com a ousadia das suas próprias palavras. E ainda desta vez foi a jovem bela e estranha a primeira a falar. - Que dirão os vossos irmãos. quando souberem do nosso encontro?
Ele pareceu cair do sonho na realidade. Teve um movimento brusco de enervamento, a traduzir íntima inquietação.
- Tendes razão, senhora. Preciso de falar imediatamente com os meus irmãos. E agora, atrevidamente, foi o rapaz quem segurou as mãos dela, apertando-as nas suas. Com a violência do amor da juventude.
- Senhora, por tudo vos peço que não vos afasteis daqui. Eu voltarei em breve, para ficarmos juntos até à feira acabar!
Multiplicando-se em esforços, o mais novo dos quatro irmãos foi rompendo por entre a multidão, até que finalmente conseguiu encontrar os outros.
Ofegante, correu para eles.
- Irmãos!... Irmãos!... Ainda bem que os encontrei!
O mais velho fitou-o. Curioso e inquieto. Talvez desconfiado.
- Que se passa? Que tens tu?
Então o outro , lentamente, olhou os três, um por um, e disse devagar, silabando bem para que ouvissem melhor.
- Apaixonei-me!
Houve gargalhadas. Mas gargalhadas diferentes. Conforme as reacções de cada um.
- Deves ter bebido, com certeza!
- Apaixonado? Por alguma rapariguita da tua idade?
- Que partida é essa que tu nos queres pregar?
Mas, sem fazer caso, nem da troça, nem do desdém, nem da descrença, o mais novo dos quatro contou o seu maravilhoso encontro com a jovem formosa.
Os comentários choveram imediatamente:
- Se ela é assim, eu também a quero ver!
- Primeiro estou eu, que sou mais velho do que tu!
- Isso não interessa. Quem chegar primeiro é que vence!
- Porque não a trouxeste contigo?
- Foste um parvo! A esta hora já fugiu.
- Eu vou procurá-la!
- Nada disso. Quem vai sou eu!
De repente, o irmão mais velho resolveu impor a sua autoridade. Pela primeira vez na vida dos quatro irmãos.
- Calem-se! Sou eu o mais velho de todos. Portanto sou eu que vou falar com a tal jovem. Depois lhes direi a minha opinião.
Simplesmente, tal como se conta, ele esqueceu-se de perguntar qual o local onde a rapariga ficara. E, assim, teve de percorrer a Feira Grande em várias direcções, sem que a descobrisse.
Já estava prestes a desistir, quando ouviu alguém rir mesmo junto de si. Voltou-se. Era uma rapariga estranhamente bela.
- Não me digais que sois vós o tal irmão mais velho que anda à minha procura.
Ele suspirou. Encontrara-a, finalmente! E confessou:
- Sou eu, sim . E tenho muito prazer em verificar que o meu irmão mais novo falou verdade!
Ela tornou a rir. Um riso cristalino mas esquisito.
- Perdoai, Senhora. Posso saber porque razão estais tão alegre?
Ela envolveu-o num olhar meigo e perturbador. Irónico também.
- Estou a rir. porque já todos passaram por aqui. Os outros vossos três irmãos! - Eles fizeram isso?
- E porque não?
As duas perguntas quase se chocaram. Depois o irmão mais velho tentou esclarecer:
- Não o deviam ter feito.Sabiam que eu tinha vindo precisamente à vossa procura. Para falar primeiro convosco, Senhora!... Eu tenho essas primazia. Sou o mais velho dos quatro!
Os olhos dela semicerraram-se, num olhar felino.
- Pois escutai, então. Eles passaram por aqui. e estão apaixonados por mim! Seria um desafio? Ele assim o entendeu. E não hesitou na resposta:
- Pior para eles!... Só eu, Senhora, tenho direito ao vosso amor!
A surpresa pareceu estampar-se no rosto da rapariga. Surpresa sincera. Surpresa grande.
- Como? Que dizeis?... Tendes o direito ao meu amor? Porquê?
Ele compreendeu que se excedera. Procurou adoçar a explicação:
- Bem vedes, Senhora. Sou o mais velho dos quatro. O mais experiente. O que mais vos pode oferecer. Os outros dependem de mim.
Entendeis-me, não é assim' Como mais velho, devo ter sempre a prioridade! Ela pareceu não se conformar.
- Enganais-vos. Em amor, não há prioridade. Só eu posso decidir. Ouvis bem? Só eu quero decidir!
O homem achou melhor não prolongar a discussão. E limitou-se a perguntar: - Se assim é. que decidis?
Altiva, mais bela do que nunca, a estranha desconhecida ditou então ao vento a sua resposta, como se o vento levasse as palavras para a eternidade: - Quereis saber o que eu disse aos vossos três irmãos?... Escutai, pois: Casarei com aquele que entre vós for o mais valente e o mais forte!
Agora foi ele a rir. Um riso de triunfo.
- Mas, Senhora, eu sou tudo isso!
E logo ela, num ar gaiato e provocante, inquiriu:
- Como o provais?...
Diante da falta de resposta, continuou:
- Cada um dos vossos três irmãos afirmou também que era o mais forte e o mais valente!
- Mas eu sou o mais velho, Senhora!
Ela encolheu os ombros, espicaçando-lhe o brio.
- Isso nada prova!
O homem agarrou-a pelos ombros, num decisão súbita.
- Que desejais?
E a rapariga, libertando-se sem grande esforço, acentuou pausadamente:
- Já que me quereis. é preciso que os quatro lutem entre si, até que um fique vencedor dos outros três. Esse será o mais valente e o mais forte. E esse será também o que me conquistará !
O mais velho dos quatro baixou a cabeça. Parecia vergado por um peso enorme. Talvez o peso da própria consciência.
- Senhora, o que pedis é realmente terrível!... Assim se destruirá para sempre a amizade dos quatro irmãos. Uma amizade que vale como exemplo, Senhora! A resposta dela foi cruel, mas excitante:
- Eu só poderei pertencer a um de vós.e não aos quatro! Não pensais assim? O homem hesitou ainda, antes de falar. Por fim, as palavras saíram em voz soturna:
- Pois será satisfeito o vosso desejo, senhora. Vou à procura dos meus irmãos!
Mas logo a jovem formosa, intencionalmente aproximou-se dele e apontou para bem perto.
- Não vos canseis. Eles já estão à vossa espera, lá em baixo. Foi um encontro brutal. Os quatro irmãos (antigamente tão amigos e unidos, como outros não havia) olhavam-se agora cheios de rancor.
Pela primeira vez nascera o ódio entre eles. Um teria de matar os outros, para mostrar que era o mais forte e o mais valente. E conquistar aquela mulher estranhamente bela, que os olhava lá de cima, como que envolta numa auréola de luz. De luz ou de fogo?...
A luta começou. Luta de vida ou de morte. De qualquer modo, luta de tragédia, entre quatro irmãos que até bem pouco antes eram exemplo de compreensão e lealdade!
O mais velho foi afinal o primeiro a sucumbir. Depois outro. E logo outro. Por prodígio, aquele que conseguira resistir até ao fim era o mais novo. Mas também pouco lhe restava de vida. Ele bem o compreendeu, ao olhar os corpos dos irmãos caídos por terra.
E então, sem voltar a olhar sequer lá para o cimo, onde estava a mulher desejada, começou a arrastar-se, com as poucas forças que lhe restavam, a caminho da igrejinha que ficava próximo dali.
Foi desse modo que lá conseguiu chegar. Esvaindo-se em sangue.
Morrendo aos poucos.
Quis levantar-se, mas caiu nos braços do prior.
- Padre, meu bom padre. ajudai-me!
O sacerdote impressionou-se.
- Meu Deus! Nesse estado. Mas que aconteceu?...
Em voz agonizante, mal se ouvindo por vezes, o pobre rapaz, único sobrevivente dos quatro irmãos, contou a sua história triste. Triste e dolorosa. O padre benzeu-se rapidamente e benzeu o moribundo.
- Meu pobre filho. Tu e os teus irmãos foram certamente enganados pelo Demónio, na figura de uma mulher perversa.
E suspirando, de olhos erguidos ao céu:
- Meu Deus, fazei que ao menos se possam salvar as suas almas!
Com muito custo, o sacerdote conseguiu levar o rapaz agonizante ao local onde se desenrolara a terrível e singular batalha. Mas, chegados ai, o jovem não resistiu mais. Tombou também para sempre, ao lado dos outros. De novo estavam juntos, os quatro irmãos!
Lá os enterrou, o bom sacerdote, colocando-os lado a lado, rezando-lhes as últimas orações, para que as almas não se perdessem.
E fosse pelo que fosse, a verdade é que sobre a campa de cada um dos quatro irmãos surgiu, mais tarde, um penedo, que passou a marcar para o futuro a triste sepultura.
E a povoação que depois se ergueu nesse mesmo local a denominar-se a Terra dos Quatro Irmãos. E, mais modernamente, apenas Quatro Irmãos.
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A lenda é originária da freguesia de Sande São Martinho a Norte do Concelho de Guimarães.
Comentando esta história de um ponto de vista menos romântico e mais racional, é óbvio que esta lenda tem um forte conteúdo religioso.
Era comum (e ainda talvez o seja) na era católica inicial, associar o demónio às mulheres. Este relacionamento reflectia os medos e receios que a igreja propositadamente transmitia às populações para que estas não se deixassem cair em tentação.
Especulando na origem desta história, lembro-me que foi enviado para a Gallaecia no séc. VI por ordem do papa São Martinho de Dume. Este, ficou-se pela capital Bracarense e estava encarregado de acabar com as incontáveis práticas de paganismo do Galaicos. A proibição de certos rituais e a mais que frequente associação de tudo o que era negativo às mulheres pode ter originado muitas destas lendas.
Inicialmente, o nosso povo de cultura Celtica-Atlantica venerava as mulheres e tratavam-nas com todo o respeito. Os porcos romanos invasores que destruiu a cultura original relataram que as mulheres lutavam até lado a lado com os guerreiros Galaicos. Além disso, existem muitas esculturas Castrejas e da era megalítica que demonstram a devoção e divinação a que as mulheres eram alvo.
Obviamente, para acabar com tão pérfidas e descabidas crenças (onde já se viu respeitar as mulheres!! Estes pagãos ignorantes que éramos enchem-me de vergonha...), as beleza da mulher foi condenada a obra do diabo e todas as que saiam da estreita linha comportamental católica ficavam com o rótulo de bruxas e sujeitas a serem queimadas vivas nas fogueiras.
Até Maria Madalena, fiel e amante a Jesus Cristo foi conotada de prostituta...
Portanto, nesta lenda é clara a intenção de manipular os hábitos e instintos das populações através do terror.
O que me intriga mesmo é o monumento em si. Os símbolos e alguns dos seus elementos reportam para épocas pré-medievais... Precisamente a época em que São Martinho de Dume chegou às terras Galaicas...