Não se vêem anéis ou pulseiras, as mãos estão livres…
Que mulheres usam mais ouro?
- As noivas - vestidas de negro, A cor do poder.
- As mordomas - com uma vela votiva para acender a uma santa.
Quando observamos todo aquele ouro, disposto em triângulo, todo verdadeiro para nosso espanto, percorre-nos uma sensação de respeito, como perante uma visão sagrada e mítica.
Por que acontece isto no Minho e não noutras regiões do País ou até do mundo?
Porquê no Minho?
Tudo teria começado na Pré-história. O ouro seria usado por quem detinha poder. Antes de Cristo, testemunha Estrabão, as mulheres eram, no Noroeste peninsular, as detentoras da propriedade que a passavam por linha feminina. E esta, para mim, é a razão subterrânea do poder das mulheres do Minho, Já vem do fundo dos tempos.
Estrabão, autor romano que viveu no tempo de Cristo, entre c. 65 a.C. a 25 d.C., refere na zona cantábrica, abrangendo Minho e Galiza, uma espécie de “ginecocracia” (matriarcado). Diz que “todas as mulheres bárbaras trabalham a terra” e que o marido “está obrigado a dotar a mulher; e as filhas, que herdam delas, têm a obrigação de casar seus irmãos, o que constitui uma espécie de ginecocracia, ainda que não como regime político”(1).
As filhas, que herdam delas, têm a obrigação de casar seus irmãos
Apesar de Estrabão ser do tempo de Cristo, ele seguia autores mais antigos, segundo Armando Coelho. “Estrabão, Apiano e Avieno, seguem crónicas, cartas de navegação e escritos geográficos gregos ou púnicos, e autores mais antigos, muitos deles bons conhecedores da Península, cujos textos originais se perderam...”(2).
Portanto, já no tempo dos Galaicos, dos castrejos, portanto, existia “uma espécie de ginecocracia” na região do Minho e Galiza. E os bens, tal como o ouro, eram passados por via feminina.
As minhotas vencem os tempos
Foram os Romanos os primeiros a enfrentar a força das mulheres do Minho. Elas matavam os filhos para não pertencerem aos vencedores. Vestiam a roupa dos mortos e iam para a luta. Elas marcharam sobre o Porto, mataram o governador e foram mostrar para Braga a sua cabeça.
Mas a romanização venceu e retirou poder às mulheres. Os filhos passaram a ser do pai. Veio o Cristianismo e o poder das mulheres sofreu outro rude golpe. Acabaram as deusas (passou a adorar-se um deus masculino e único criador da vida). Acabaram as oficiantes (elas foram proibidas de tocar nas coisas sacras… e ainda hoje não são sacerdotes). Acabaram os ritos de fertilidade, a veneração das fontes…
Os Mouros, mais opressores que os Cristãos, permaneceram vários séculos na Península. Trouxeram a poligamia, retiraram às mulheres o espaço público, tornaram-nas invisíveis, taparam-nas com farrapos deixando-lhes só os olhos de fora.
No Minho, não se nota que os Mouros tenham feito “estragos” no poder das mulheres. Mas como essa opressão, tanto cristã como muçulmana, provinha sobretudo da religião, então as mulheres deram a volta e privilegiaram o culto da adoração a entes femininos – santas e Nossas Senhoras. E perverteram o sentido religioso da tristeza e sacrifício, em festa e alegria.
Uma particularidade interessante é que o ouro não era, nem é, usado só pelas mulheres ricas. As pobres, quando conseguiam uns tostões, investiam no seu cordão.
O ouro não era, nem é, usado só pelas mulheres ricas
Nos Descobrimentos, muitos homens partem e as mulheres tomam conta da província. Renasce nelas o antigo poder de serem detentoras da propriedade. A Lei Mental e dos morgadios impõem-se. Tanto as riquezas públicas como os bens familiares são dados descaradamente aos homens com legistas, sábios e Igreja a concordar. A romanização, o Cristianismo, o domínio dos Mouros já as haviam despojado das riquezas e, agora, a Lei dá a machadada final – os bens passam de homem para homem e tinha de ser filho legítimo.
Renascem forças antigas, num tempo novo, forças subterrâneas, e a mulher descobre que o ouro, riqueza que vem da Pré-história, se pode contrapor à propriedade masculina.
Mas como fazer isso sem reacção social? A princípio ela não vai usar o ouro como riqueza, mas como algo de sagrado. Como um talismã para a sua própria fecundidade. Por isso é bem aceite por todos. Os cultos masculinos foram subtilmente substituídos por cultos femininos. A Sr.ª d’Agonia, de sofrimento extremo, reminiscência de um antigo culto à Lua, foi transformada na romaria mais alegre do País. E assim, com a ajuda do sagrado, de cultos femininos, da festa, as minhotas conseguiram enganar as leis e fazer reviver tempos anteriores à romanização em que os bens se transmitiam por via feminina.
O menir feminino – hino impar à fertilidade
A “ginecocracia” de Estrabão é apoiada por vestígios arqueológicos. No Sul do País, encontramos menires fálicos. Mas no Minho, em Paredes de Coura e Ponta da Barca, encontramos menires femininos. A gravura mostra o de Paredes de Coura, serra de Bulhosa, com seios e colares.
Mas repare-se agora na cabeça da estátua. Nós dizemos “cabeça”, mas o que lá está não se assemelha ao formato normal duma cabeça humana nem de bicho. Não é arredondada, não tem crânio, nem olhos, nem boca, nem cabelo. Então o que significará? Se lhe retirarmos o volume, essa “cabeça” tem o formato dum triângulo, mas dum triângulo cónico, com o vértice para cima.
Camilo diz-nos que as mulheres trabalhavam no séc. XVIII e que investiam em ouro
“O triângulo com o vértice para cima simbolizava o fogo e o sexo masculino; com o vértice para baixo, simbolizava a água e o sexo feminino e, pela sua semelhança com o púbis, está muito ligada a motivos de fertilidade”(3).
Portanto, o triângulo para cima assemelha-se à pujança da masculinidade necessária para a procriação e o “renascimento” da vida. É esse o sentido dos menhires fálicos do Sul, dizem, com uma intenção mágica de fertilidade, considerando o campo um útero.
O triângulo feminino nas jóias da minhota
Em Lisboa, no Museu de Arqueologia, visitei, em Março de 2008, uma esplêndida exposição: “Ouro Tradicional de Viana do Castelo – da Pré-História à Actualidade”. Publicaram também um livro de apoio com o mesmo título(4). Tomo a liberdade de reproduzir algumas imagens desse catálogo, porque exemplificam a minha teoria.
A arrecada encontrada em Carreço data da Segunda Idade do Ferro (“Ferro Castrejo”). Reúne, tal como o menir de Paredes de Coura, os símbolos da fertilidade masculina e feminina. Foi comprada por Leite de Vasconcelos, por 237 000 réis, em 1905. Repare-se como essa jóia tem o triângulo de vértice para baixo, o ventre com 5 objectos redondos, como que fecundado, tendo no meio um espaço com o formato do órgão masculino – um hino à fecundação humana.
O Museu Arqueológico de Guimarães, Sociedade Martins Sarmento, guarda umas arrecadas dos séc. III a.C. - I a.C., encontradas na citânia de Briteiros. Repare-se no triângulo masculino para cima e no triângulo feminino, redondo, para baixo.
As arrecadas eram usadas pelas mulheres do povo. Camilo Castelo Branco, referindo-se a uma mulher do séc. XVIII, em 1750, de Póvoa do Lanhoso, diz no seu livro sugestivamente chamado “O Demónio do Ouro”: “Durante a longa doença de seu marido, Luísa vendera dois cordões e arrecadas, que em solteira ganhara na tecelagem, para suprir ao cirurgião e à botica”(5).
Por esta frase, Camilo diz-nos que as mulheres trabalhavam no séc. XVIII e que investiam em ouro, riqueza usada quando havia uma grande dificuldade na família.
D. António da Costa(6), refere em 1873:
“A primeira minhota que me surpreendeu foi uma lavradeira da freguesia de Deucriste… Das orelhas pendiam-lhe arrecadas resplandecentes, ao redor do pescoço um grilhão de oiro em cinco voltas...”
Portanto, no séc. XIX, era vulgar o uso quotidiano de arrecadas. O uso dos brincos à rainha impôs-se no final desse século.
Os brincos à rainha são um bom exemplo para atrair a fertilidade para a sua portadora
Observemos agora o formato desses brincos - as arrecadas são circulares, tem outro círculo móvel dentro, e terminam com um triângulo com o vértice para baixo.
Vejamos agora uns brincos à rainha - sobressai uma parte redonda, como um ventre “germinado”, “fecundado”. Dentro, solto, vê-se uma roda mais pequena e móvel, que poderá significar o filho preso ligeiramente à mãe mas que é independente e sai do ventre. Designa-se bambolina, porque balança. E para terminar a jóia, voltamos a ver um triângulo invertido, símbolo do feminino pela semelhança com a púbis. Pode não ter havido essa intenção, mas tanto as arrecadas como os brincos à rainha, são um bom exemplo de uma manifestação de louvor, de culto talvez, um pedido para atrair dos astros e do sagrado a fertilidade para a sua portadora.
Mas já que falamos em triângulo com o vértice para baixo, símbolo feminino de louvor à fertilidade, comparemos agora as voltas da estátua menhir de Paredes de Coura e o ouro das vianesas ao peito. Três mil e quinhentos anos as separam, três milénios e meio! Em ambas as situações, tantos os riscos pré-históricos como a disposição do ouro das vianesas actuais, têm o formato dum triângulo com o vértice arredondado voltado para baixo. Como já se explorava o ouro na Pré-História, serão de ouro os colares do menir?
O triângulo pré-histórico na pedra e no brinco
Ponhamos agora lado a lado uma inscultura encontrada no Lindoso, Ponte da Barca, com outra arcada do Norte de Portugal. Esse desenho lavrado na pedra é atribuído ao início da Idade do Bronze. Quanto à arrecada, é posterior, da Segunda Idade do Ferro. Constata-se perfeitamente a semelhança – o triângulo púbico, os orifícios, talvez boca e olhos, os círculos, os redondos dos seios e ventre. Portanto, talvez possamos concluir que o ouro tinha um significado, não era apenas um adorno.
O símbolo dos “SS”
A Câmara de Vila Nova de Cerveira é proprietária de uma conta de brinco datada da época suevo-visigótica. Esta conta tem a particularidade de ser decorada com SS. Os SS são um motivo decorativo de diferentes jóias em ouro de Viana usadas ainda na actualidade.
O que significa esse SS?
O ouro é usado, embora de uma maneira inconsciente, como uma prece, uma perpetuação, um louvor à vida
Segundo o conhecido ourives Manuel Freitas, são o desenho estilizado de dois patos a voar. Segundo este coleccionador(7), os patos são o “símbolo da união e da fertilidade conjugal, ao qual se junta, por vezes, a noção de força vital, pelo facto do macho e fêmea nadarem sempre em conjunto… Actualmente, estas formas aparecem nas arrecadas de Viana e nos brincos parolos (nos primeiros, em forma de “SS”, e nos segundos de forma explícita”.
A Vénus da algibeira e brinco
E essa força mítica, que alia traje e ouro, continua a louvar a fertilidade feminina talvez inconscientemente. Imaginemos as estátuas de Vénus bojudas e grávidas da Pré-história. Comparemos agora com uma algibeira e com um brinco actual.
Quer dizer, de diferentes maneiras – menires, insculturas na pedra, arrecadas pré-históricas, brincos, traje – encontramos símbolos de fertilidade. E, de uma maneira única, encontramos a fertilidade masculina e feminina a par. Assim, no matriarcado, quando as mulheres detinham o poder, elas não anularam os homens. No patriarcado, os homens não anularam as mulheres. Segundo Frei Luís de Sousa, (c. 1619), os homens de Viana eram “mais que liberais”(8). Daí a singularidade duma província.
O ouro é usado ainda hoje, embora de uma maneira inconsciente, como um rito de fertilidade. Uma prece, uma perpetuação, um louvor à vida.
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Fonte: Fina D`Armada
(1)Estrabão, Description da Iberia, trad. Antonio Blasquez, vol, 8º, Madrid, 1900, pp.19-51.
(2)Armando Coelho, “A Idade dos Metais em Portugal” in História de Portugal, I, (dir. José Hermano Saraiva), Lisboa, ALFA, 1988:123.
(3)Manuel Rodrigues de Freitas, “Ouro”, in Cadernos Vianenses, tomo 32, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 2002: 186.
(4)Alberto A. Abreu at al., Ouro Tradicional de Viana do Castelo – Da Pré-História à Actualidade, Museu de Arqueologia e Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2007: 7.
(5)Camilo Castelo Branco, O Demónio do Ouro, Lisboa, parceria António Maria Pereira, 1905: 33.
(6)D. António da Costa, No Minho, 2ª edição, Porto, Figueirinhas, 1900: 233-234.
(7)Manuel Rodrigues de Freitas, “Ouro”, in Cadernos Vianenses, tomo 32, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 2002: 187.
O brinco foi retirado do Catálogo da exposição “Ouro Tradicional de Viana do Castelo – Da Pré-História à Actualidade”, 2007: 62. A algibeira é a minha.
(8)Frei Luís de Sousa, Vida de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, Livro I, cap. XXVI, 1619.